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Elitização das torcidas nos estádios: uma questão histórica

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Henrique Sena*

A introdução do futebol no Brasil na transição dos séculos XIX e XX, de certa forma, foi marcada por uma apropriação das elites brasileiras, sobretudo jovens que estudavam. No início do século passado, as elites brasileiras tentaram fazer do futebol um grande evento de distinção social. Assim, no que se refere ao comportamento da torcida, existia uma preocupação com as roupas com as quais as pessoas deveriam freqüentar os estádios, bem como uma série de recomendações no que diz respeito a forma de torcer que deveria ser comedida e discreta.

Naqueles tempos em que o futebol era sinônimo de civilização e progresso, a prática e a assistência do futebol eram pensadas pelas elites como uma forma do país se aproximar de uma cultura européia moderna. Neste sentido, buscava-se valorizar no esporte modelos de comportamentos que revelassem a capacidade do país em se apresentar como avançado. Em Salvador, nos anos 1920, por exemplo, as torcedoras abastadas frequentavam o Campo da Graça com as roupas mais delicadas possíveis, o que foi motivo de critica de jornalistas da época. Os jornalistas viam neste hábito um excesso de modismo que por vezes inibia a presença de jovens modestas no estádio por não possuírem roupas custosas.

Como se vê, é claro que este processo buscava marginalizar e até excluir uma série de grupos sociais que não se encaixavam no perfil de torcedores desejados pelas elites. As camadas populares e negras não raramente eram criticadas pela forma com que freqüentavam os estádios e torciam. Não só as mulheres, mas também os homens pobres não possuíam roupas consideradas adequadas pelas elites para ir a um estádio de futebol e nem poderiam torcer de forma mais entusiasmada porque manchavam o ideal de civilidade almejado pelos grupos dominantes.

Por outro lado, tal como ocorre hoje, a operação das elites não deixava de ser uma apropriação de uma forma de conceber o futebol, uma vez que no momento em que aportou no Brasil, o esporte na Inglaterra já havia passado por longo processo de popularização. Existindo desde a metade do século XIX entre os britânicos, o jogo de bola surgiu nas escolas como exercícios praticados de diversas maneiras. A partir de sua normatização e uniformização pela criação do Foot-ball Association em 1863, rapidamente difundiu-se por toda Inglaterra.

No limiar do século XIX, o futebol já contava com milhares de clubes, não só das elites como das classes médias e trabalhadoras. Estas últimas, já na década de 1880, eram tão atraídas pelo futebol que o jogo chegou a ser definido pelo historiador Eric Hobsbawm como sua religião leiga. Além disso, naquele período, o futebol inglês passou a ser uma garantia de vultosas rendas para dirigentes, se tornando um negócio lucrativo também para os jogadores.

Todo este processo parece ser desconsiderado quando o divertimento chegou no Brasil. Mais preocupados em apresentar o futebol como uma prática distinta, moderna e importada, há uma tentativa de ver somente seu lado elitista, que há um bom tempo deixara de ser predominante na Inglaterra. Enfim, a elitização dos públicos nos estádios em decorrência da construção das arenas guarda profundas relações com um passado do nosso futebol não muito distante. Se hoje o Brasil, a partir dos grandes eventos esportivos busca se afirmar internacionalmente como uma potência, mais uma vez o faz privilegiando um perfil muito específico de torcedor que é o desejado para apresentar o progresso do Brasil ao mundo.

Por fim, eu diria que no passado e no presente, as apropriações no futebol não deixam de existir. Assim como os jovens elitizados no início do século selecionavam no já popularíssimo futebol inglês elementos que reforçassem uma distinção social, atualmente o nosso país apenas tem se inspirado no modelo de construção e infra-estrutura das grandes arenas futebolísticas no mundo, e convenientemente, negligenciando políticas esportivas responsáveis por acesso mais democrático aos novos estádios, como ocorre em alguma medida em países como a Alemanha.

*Henrique Sena é mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana e doutorando em História Universidade Estadual Paulista


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